Saúde mental e o risco invisível que as empresas não podem mais ignorar

Apesar do crescente reconhecimento da saúde mental como um fator crítico de sustentabilidade, CEOs e conselhos de administração ainda tratam o tema como periférico, emergencial ou meramente operacional — como se bastasse “atender à NR-1”. Há um desalinhamento evidente entre a percepção de cuidado e a real capacidade institucional de enfrentar, com inteligência estratégica, os […]

Por Ana Carolina Peuker

Apesar do crescente reconhecimento da saúde mental como um fator crítico de sustentabilidade, CEOs e conselhos de administração ainda tratam o tema como periférico, emergencial ou meramente operacional — como se bastasse “atender à NR-1”. Há um desalinhamento evidente entre a percepção de cuidado e a real capacidade institucional de enfrentar, com inteligência estratégica, os riscos psicossociais que impactam diretamente a produtividade e a reputação das organizações.

A nova versão da NR-1 (Norma Regulamentadora nº 1), do Ministério do Trabalho e Emprego, estabelece diretrizes gerais de saúde e segurança no trabalho e exige que empresas avaliem e gerenciem riscos psicossociais — como estresse, assédio moral e burnout — em seus ambientes de trabalho. No entanto, o cumprimento formal da norma não garante, por si só, a construção de uma cultura de saúde mental sólida e preventiva.

Estudos da Deloitte (2023) e do McKinsey Health Institute (2022) mostram que as perdas globais associadas à má saúde mental ultrapassam US$ 1 trilhão por ano em produtividade. Ainda assim, a maioria da alta liderança falha em integrar o tema à governança de riscos e à agenda ESG. Essa omissão, muitas vezes, está ligada a três erros recorrentes: subestimar os impactos financeiros do adoecimento, negligenciar os passivos organizacionais ligados à sobrecarga emocional e minimizar os sinais precoces de sofrimento nos ambientes de trabalho.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontaram, em 2022, que 750 mil pessoas morrem anualmente por causas relacionadas a jornadas excessivas. No ambiente corporativo, isso se reflete em absenteísmo, presenteísmo, aumento de processos trabalhistas e perda de performance. Segundo dados do INSS (2024), os transtornos mentais já lideram os afastamentos do trabalho por incapacidade no Brasil. A cada dez colaboradores afastados por mais de 15 dias, três apresentam diagnósticos como ansiedade, depressão ou burnout. Os afastamentos por esse motivo cresceram 134% no país, de acordo com a Série SmartLab de Trabalho Decente (2025).

Além dos impactos humanos e sociais, as perdas financeiras são expressivas. A McKinsey estima que o presenteísmo — quando o trabalhador está presente, mas esgotado — pode acarretar perdas equivalentes a até 60% do salário anual por pessoa. Ignorar essa realidade é um risco direto à saúde financeira e reputacional das empresas.

Outro ponto negligenciado é o “passivo emocional” das organizações. O acúmulo de estressores crônicos não tratados — como metas irreais, insegurança psicológica e ambientes tóxicos — é descrito por especialistas como uma “dívida emocional organizacional”. Segundo o relatório Mental Health at Work 2023, da Mind Share Partners, 68% dos colaboradores globais afirmaram que sua saúde mental impactou negativamente seu desempenho no último ano.

“Precisamos inserir na estratégia organizacional o conceito de saúde integral. Durante muito tempo priorizamos as questões físicas associadas ao ambiente de trabalho, com ações pontuais relacionadas à saúde mental. A evolução está em discutirmos, em nível estratégico, o tema, lincando com a agenda ESG das organizações, incorporando projetos de prevenção à saúde integral e ao bem-estar, com objetivos e metas claros, buscando identificar como os fatores cognitivos e organizacionais podem interferir na saúde integral das pessoas.  Precisamos também ter clareza da necessidade de letramento da liderança para que esteja preparada para atuar e desdobrar o tema em todos os níveis”, complementa Luciane Sartori, gerente de Saúde, Segurança e Meio Ambiente e ESG da Randoncorp.

Cultura do Silêncio – Como isso ressoa na sua organização?

No entanto, muitos representantes do C-level e conselheiros ainda evitam conversas difíceis. De acordo com o relatório do CIPD UK (2024), apenas 31% dos líderes seniores se sentem preparados para lidar com temas ligados à saúde mental, perpetuando a cultura do silêncio. Empresas só se mobilizam diante de eventos críticos, como surtos de afastamentos ou casos de suicídio, quando o ideal seria agir preventivamente.

Esse cenário pode e precisa mudar. Há caminhos objetivos para que conselhos de administração assumam uma liderança mais ativa e resiliente. A primeira medida é incorporar a saúde mental à governança de riscos e à agenda ESG, com a inclusão de métricas de bem-estar nos dashboards estratégicos. Iniciativas como o Workforce Disclosure Initiative e as diretrizes da SASB já apontam indicadores sociais relacionados ao tema.

Além disso, é fundamental exigir avaliações regulares de fatores psicossociais, com base em diretrizes como a ISO 45003, versão atualizada da NR-1 brasileira (em vigor a partir de maio de 2026) e ferramentas digitais como o método AVAX, que possibilitam mapear riscos organizacionais com responsabilidade e embasamento técnico.

Para Luiz Antonio Setti, gerente de Saúde Corporativa da Yara Brasil Fertilizantes, implementar tais práticas têm contribuído fortemente para discussões produtivas sobre como os colaboradores atuam e se relacionam no ambiente de trabalho. Ferramentas de gestão de riscos psicossociais, como AVAX, possibilitam agilidade no mapeamento por meio de sistemas online, respeitando as normas de LGPD e confidencialidade.

Outro passo é considerar os impactos emocionais nas decisões estratégicas. Mudanças como fusões, cortes ou reestruturações afetam diretamente a saúde emocional dos times e devem ser acompanhadas com atenção. O investimento em bem-estar, longe de ser apenas um “custo”, pode se transformar em diferencial competitivo: segundo a PwC Austrália (2023), empresas com maturidade em programas de saúde mental relatam aumentos de até 21% em produtividade e 19% em rentabilidade.

A promoção de uma cultura de escuta e aprendizagem contínua também é essencial. Transformar relatórios de RH em decisões estratégicas, estabelecer rituais de escuta com profundidade e analisar incidentes com olhar preventivo, e não apenas reativo, fortalece a resiliência organizacional.

A saúde mental é, cada vez mais, um ativo estratégico — invisível à primeira vista, mas essencial à sustentabilidade dos negócios. Quando ignorada, corrói silenciosamente a base do desempenho; quando cuidada com seriedade, torna-se uma vantagem competitiva, reputacional e humana.

As discussões dos resultados obtidos por essas ferramentas e a elaboração do plano de ação pelos próprios participantes fomentam conversas difíceis, mas importantes, incluindo papéis e responsabilidades, comunicação assertiva e expectativas de carreira em um fórum multidisciplinar, envolvendo gestão, RH e Saúde, diz Setti.

Líderes que integram essa pauta à sua governança não apenas se protegem de crises futuras, mas também lideram com propósito e inteligência no século XXI. A saúde mental é a nova linha de defesa da governança corporativa. E, como toda transformação cultural relevante, precisa começar no topo.

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